domingo, 4 de dezembro de 2011

Artigo - E O PALHAÇO O QUE É?

E O PALHAÇO O QUE É?
(Marton Maués)

As definições a respeito do clown (palhaço) não variam muito. Esteja ele onde estiver, nas ruas, no picadeiro ou no palco, o clown é um representante da total liberdade de ser, é aquele que se mostra sem medo e, assim, mostra a nós todos nossos próprios medos. O clown se expõe, ri de seu próprio ridículo, assume-se como é ingênuo, grotesco, engraçado e lírico revelando aos que o assistem e riem dele o ridículo de suas próprias condições.

Ao longo dos anos, desde o seu aparecimento no moderno circo de Philip Astley, a figura do palhaço vem ganhando relevo, chamando a atenção de artistas e pesquisadores. Para Jacques Lecoq (1997), um dos grandes estudiosos da arte do clown no mundo, sobretudo o clown ligado ao teatro, foi precisamente nos anos sessenta que essa busca se intensificou. Em sua escola, criada em Paris em 1956 e a qual chamava simplesmente L´Ecole (como é conhecida mundialmente), o ex-ginasta e também ator apaixonado pela arte teatral, pesquisou e explorou exaustivamente o cômico e a arte clownesca. Lecoq[1] cunhou o conceito de clown pessoal, fundamental à preparação e formação dos atores de sua escola e, hoje, metodologia utilizada por vários grupos e artistas.

Essa busca de seu próprio clown reside na liberdade de poder ser o que se é e de fazer os outros rirem disso, de aceitar a sua verdade. Existe em nós uma criança que cresceu e que a sociedade não permite aparecer; a cena a permitirá melhor do que a vida. (Lecoq, 1997, p. 154)

Cada ator tem seu próprio clown, único e com características próprias, extraídas dele mesmo. Um clown não se improvisa, um clown é.

O clown não existe fora do ator que o representa. Nós somos todos clowns, nós nos achamos todos belos, inteligentes e fortes, quando nós temos cada um nossas fraquezas, nossa derrisão, que ao serem exprimidas fazem rir (Lecoq, 1997, p.156).

Lecoq observa que buscar o clown é buscar a própria derrisão, o próprio ridículo. O ator deve descobrir em si a parte clownesca que o habita. “Menos ele se defende, menos ele tenta representar um personagem, mais o ator se deixa surpreender por suas próprias fraquezas, mais seu clown aparece com força” (Lecoq, 1997, p. 157). Para Burnier, a descoberta e a tarefa de criação do clown é extremamente dolorosa, põe a nu seu proponente, daí ser também uma tarefa extremamente e positivamente humana.

O clown é a exposição do ridículo e das fraquezas de cada um. Logo, ele é um tipo pessoal e único... O clown não representa, ele é – o que faz lembrar os bobos e bufões da Idade Média. Não se trata de um personagem, ou seja, uma entidade externa a nós, mas da ampliação e dilatação dos aspectos ingênuos, puros e humanos (como no clods), portanto ‘estúpidos’, do nosso próprio ser (Burnier, 2001, p. 209).

É preciso compreender e saber jogar o jogo do clown. Segundo Lecoq, o ator deve entrar em cena aberto, disponível, sem defesas, sempre em estado de reação e de surpresa, sem preceder a condução do jogo, “telefonando”, como dizem na França, “reagindo antes que tenha um motivo para fazê-lo” (Lecoq, 1997, p. 155). O mestre explica:

O clown é aquele que dá furo, que estraga seu número e com isso coloca o espectador em estado de superioridade. Por esse fracasso ele desvenda sua natureza humana profunda que nos emociona e nos faz rir. Mas não basta estragar qualquer coisa, é preciso estragar aquilo que a gente sabe fazer, quer dizer, uma proeza. Eu peço a cada aluno que faça alguma coisa que só ele na classe sabe fazer. Le grand écart[2], entortar os dedos, assobiar de uma certa maneira. Pouco importa a virtuosidade do gesto, a proeza só existe quando o aluno é o único a poder realizá-la. O trabalho clownesco consiste então em por em relação a proeza e o furo. Peça a um clown para fazer um salto perigoso, ele não consegue. Acerte-lhe um pontapé no traseiro e ele o faz sem se dar conta! Nos dois casos ele nos faz rir. Se ele não consegue jamais, nós caímos no trágico (Lecoq, 1997, p. 155).
             
Palhaços são perdedores, são frágeis, vulneráveis. É da fraqueza que retiram sua força. Eles não têm vergonha de seus defeitos e os mostram despudoradamente – a sociedade nos quer a todos fortes, bonitos, inteligentes, bem sucedidos. Os palhaços subvertem essa vontade social, passam de um erro a outro erro em sucessão; e é na derrota que saem vencedores. Por isso nós os amamos. O clown joga do lado do perdedor, e nos identificamos com ele. Eles estão próximos de nós, de nossa natureza, por isso nos tocam, nos fazem rir e nos comovem.

Criativo, provocador de emoções, de sentimentos, sensações e de riso, com sua visão de mundo e seu intento de passar por cima de seus fracassos, o palhaço é a criança que cada um carrega dentro de si, sem tabus. É o que pensa o espanhol Alex Navarro, palhaço e estudioso do assunto, que mantém um site na internet[3], rico em informações técnicas, conceituais e históricas. Para ele, o palhaço quer amor e aceitação, quer ser como os outros, pois assim pensa ser aceito pelos demais; como a criança que quer ser um adulto. Para Navarro, as crianças de 1 a 3 anos são cem por cento clowns e com elas muito podemos aprender, pois têm timing, ingenuidade e as mais importantes bagagens básicas do clown de forma natural. Do seu ponto de vista, o clown vem da criança. Navarro dá alguns exemplos dessa afinidade entre a criança e o palhaço. Vejamos:
1.      Querem ser amadas por seus pais e em geral pelo mundo inteiro. O clown pelo seu público.
2.      Querem ser como os adultos e tratam de imitá-los. O clown faz o mesmo, deseja integrar-se e tentará parecer-se com as pessoas “adultas e normais”.
3.      São espontâneos e não têm senso do ridículo.
4.      Expressam suas emoções ao máximo e podem passar instantaneamente de uma para outra.
5.      Se uma criança dessa idade, por exemplo, bate com um brinquedo em um móvel, para um momento e olha seu pai ou sua mãe (para o clown, compartilhar com o público), se seus pais riem, muito bem (êxito), isso significa que deve seguir batendo com o brinquedo; se não riem (fracasso), deve bater com mais força ou então buscar outra maneira, quem sabe bater em outro móvel, ou bater no mesmo móvel com outro brinquedo. As crianças, sempre que fazem algo, olham o adulto para compartilhar e buscar sua cumplicidade, e suas atitudes, depois, dependerão da reação do adulto.
6.      São tremendamente curiosos e qualquer coisa pode surpreendê-los e aluciná-los. Capacidade de assombro do clown.
7.      Se lhe dão um brinquedo caríssimo podem tirá-lo da caixa, deixá-lo de lado, e passar horas brincando com a caixa e o envoltório. É o mundo ao contrário do clown.v

O clown é, pois, esse ser que vê tudo de um modo particular e próprio. Um gerador de emoções que quer e precisa do contato com outro, do jogo com o público. No trabalho do clown não existe a famosa quarta parede do teatro[4]; para o clown não existem paredes. No trabalho clownesco há um trânsito intenso entre palco e platéia. Aliás, para o palhaço as fronteiras entre esses dois espaços têm contornos indefinidos. Ele quer romper limites estabelecidos, nos tirar a todos do conforto passivo da assistência, jogar conosco, nos fazer partícipes desse jogo que é, em si, um exemplo do jogo da própria vida.

Mas fazem tudo isso de forma intensa, plena. Com emoção e imaginação ampliadas. No artigo “Procurando Pelo Seu Palhaço... e Encontrando a Si Mesmo”, publicado na revista Art et Thérapie, Bertil Sylvander [5] nos diz:

A intensidade com a qual os clowns sentem é devida ao fato de que eles vivem o momento presente de cada segundo. Sentimentos e emoções no presente são as coisas mais importantes no mundo para eles, e não estão preocupados pelo que o próximo segundo poderá trazer. Os clowns despendem tempo em saborear os extraordinários tesouros internos do momento. Permanecer próximo do presente permite aos clowns viver ao máximo suas emoções (Sylvander, 1984).

O clown vive emoções intensas e com intensidade, mas não se deixa levar por elas. Quando percebe que o copo está cheio, quase a transbordar, livra-se, brinca com as emoções e sentimentos vividos e compartilhados com o público naquele momento presente. Brincando, ele quebra a dramaticidade do instante, provocando alívio e riso. E o riso é a matéria prima do palhaço.


Bibliografia:
BOLOGNESI, Mario Fernando. Palhaços. São Paulo: Editora Unesp, 2003.
BURNIER, Luiz Otávio. A arte de Ator: da Técnica à Representação. Campinas:   Editora da Unicamp, 2001.
CASTRO, Alice Viveiros. Um pouco de história não faz mal a ninguém... IN. Revista Anjos do Picadeiro 3. Rio de Janeiro: Anjos do Picadeiro 3. 2002.
LECOQ, Jacques. Lê Corps Poétique. Paris: ACTES SUD, 1997.
PUCCETTI, Ricardo. Caiu na rede é riso. IN. Revista do Lume. UNICAMP – LUME -  COCEN. Campinas: UNICAMP – No 2, agosto de 1999.
RUIZ, Roberto. Hoje Tem Espetáculo? – As origens do circo no Brasil. Rio de Janeiro: Inacen, 1987.
SYLVANDER, Bertil. Looking for your clown...and finding yourself (on line).
TORRES, Antonio (colaboração de Alice Viveiros de Castro e Márcio Carrilho). O Circo no Brasil. Rio de Janeiro: Funarte/São Paulo:Atração, 1998.





[1] Os textos de Lecoq, em francês, sem tradução no Brasil, foram traduzidos livremente por mim.
[2] Grande Salto, movimento do balé.
[3] www.clownplanet.com
[4] Convencionou-se dizer que, no teatro convencional, existe uma quarta parede, invisível, que separando palco e platéia, impossibilitando qualquer relação entre ator e espectador.
[5] Texto originalmente apresentado em francês, disponibilizado na internet na língua inglesa e traduzido livremente por mim.

Nenhum comentário: